Nunca havia reparado naquele cara estranho. Tinha o rosto jovem, mas
cansado. Profundas olheiras e um olhar que transmitia certo desespero
silencioso. Além disso, sua camisa estava amarrotada e sua gravata estava
frouxa, como quem não se importa. “Quanto
desleixo”, pensou.
Uma sensação de repugnância aflorou
à primeira vista. Depois... pena. Edgard se lembrou do que ouviu na igreja no
mês passado (não era de frequentar muito): se compadecer dos necessitados e
desesperados. Bem, ele não parecia muito um necessitado, mas com certeza
parecia desesperado.
- Bom dia, sou Edgard. – disse estendendo a mão. O rapaz tomou um susto
tão grande que quase caiu da cadeira. Continuou:
– Nunca o vi no escritório, é novo
por aqui?
- Não. Estou aqui há 3 anos, nesta mesma mesa. Nunca fiz questão de
ninguém me ver e também ninguém nunca fez questão em me ver. É uma boa troca.
- Entendo. Qual seu nome?
- Charles.
- Bom, Charles, você não está com uma cara muito animada. Sua
aparência não é das melhores, se me permite dizer.
- Não se preocupe, não vai mais precisar se incomodar comigo aqui. É
meu último dia.
- Se quer mesmo saber, é hoje que vou ter o dia mais importante na vida
de um homem.
- Que bom! Vai se casar? Ter um filho?
Uma risadela esnobe surgiu nos lábios do rapaz.
- Nada disso, meu caro. O dia mais importante da vida de um homem é o
dia de sua morte!
- E é preciso estar doente para morrer?
- Ou de auto execução. Um ato último de coragem, que poucos encaram.
Hoje brindarei minha última dose!
Edgard aos poucos entendia o que ele queria dizer.
- Olha, nenhum motivo é grave o suficiente para tirar a própria vida.
Porque se você...
- Para por aí. – Charles interrompeu. Eu vim até aqui hoje justamente
pra refletir dos motivos que estão me levando a tomar essa decisão. Se você
quer conversar, façamos isso a noite, na minha casa.
- Promete ouvir o que tenho a dizer? – Esperava tentar evitar que
Charles se matasse.
- Não. Prometo conversar. Mas não prometer nada depois que nossa
conversa termine. Estarei um pouco ocupado.
Charles arrancou um pedaço de um processo que estava em sua mesa (era
advogado), anotou algumas palavras e o deu a Edgard.
- Aqui está. Te espero às 8. Ah, sim: Espero que beba whisky, não tem
nada além disso para lhe servir.
E saiu, enfiando o papel no bolso.
O futuro suicida pensava, enquanto via seu mais novo (e único) amigo se
distanciar. Por que havia convidado um estranho para ir à sua casa? Certamente
queria conversar uma última vez, é claro. Como não deixaria uma carta nem um
bilhete, queria pelo menos contar a alguém os motivos que o levavam a antecipar
sua “paz eterna”. Não que não quisesse escrever uma carta, mas era um puta
esforço inútil. Ninguém a leria mesmo.
Edgard estava com o endereço em mãos, na rua que o papel indicava. Mas
estava muito longe do número da casa que procurava. Descia a pé, pois o ônibus
o havia deixado bem no começo da rua. Baita roubo, o preço daquele ônibus!
Foi andando pela rua mal iluminada. As ruas pareciam ser todas iguais.
Todas de classe média. À luz dos postes, no entanto, todas elas pareciam
tristes e angustiantes.
Enquanto se aproximava de seu destino, pensava nos motivos que o
levavam até lá. Iria tentar, é claro fazer o cara mudar de ideia. Mas havia
algo de curiosidade em seu interior. Curiosidade em entender o que leva uma
pessoa ao suicídio. Nunca conhecera um suicida antes e simplesmente não entendia.
Tinha uma vida agradável, estável. Trabalho, alguns amigos, jogava bola aos
domingos e depois bebia cerveja. Assistia o jornal e depois a novela todos os
dias. Às vezes ia à igreja. Visitava sua mãe de vez em quando. Não entendia o que aquelas pessoas esperavam
da vida...
Chegou à porta que procurava. A casa era simples, mas não muito pobre.
Olhou no relógio: 19:45. Estava adiantado. Pensou em esperar o horário marcado,
mas estava muito ansioso e resolveu tocar a campainha.
Meio minuto depois, Charles atendeu a porta. Estava com a mesma roupa do
trabalho, mas sem a gravata.
- Não é engraçado como chegar mais cedo que a hora marcada é
extremamente grosseiro e chegar atrasado moda?
- Desculpe.
- Não se preocupe. Entre.
- Obrigado.
- Quer beber alguma coisa?
- Whisky com gelo.
- Haha! Não tenho gelo. É uma heresia! Beber um whisky 12 anos com gelo...
- Então sirva-me puro!
Sentaram-se com seus copos à mão. A casa era pequena, mas tinha tudo o
que se espera: geladeira, fogão, micro ondas, sofá, TV, DVD... Uma coisa chamou
atenção. Havia muitos e muitos DVDs na estante.
- São todos filmes?
- Sim, a maioria estrangeiros. Sou viciado em cinema. Sempre gostei. Já
assistiu Clube da Luta?
- Creio que não.
- É uma pena. Ótimo filme.
Os dois ficaram alguns momentos em silêncio. Brindaram. Tomaram um gole
da bebida.
- Ainda pensa naquilo?
- No que?
- Você sabe... em se... se...
- Em me matar? Claro, farei assim que você sair daqui. Não precisa se
constranger. As pessoas superestimam morte. Evitam falar dela e quando falam é
em um tom extremamente respeitoso. A morte não é nada demais, só nos tira aquilo
que nos faz sofrer.
- Mas fazê-la chegar mais rápido? Sua vida não é tão ruim... olhe quantas
coisas você tem aqui!
- Sim, tenho muitas coisas. Mas na verdade não tenho nada. Olhe, de que me
adianta tudo isso? Eu compro uma televisão do último modelo e pra que?
Preencher um vazio que me persegue. Eu fico feliz por ter comprado a TV, mas no
outro dia, a mesma sensação está de volta e eu preciso comprar alguma outra
coisa... É um ciclo infinito: é preciso comprar para ter vontade de comprar
mais. Então quando já tiver coisas demais, preciso comprar uma casa maior para
suportar todos os bagulhos que tenho aqui. Depois tenho que comprar um carro
novo! Eu tenho que trabalhar para comprar coisas que não preciso, para agradar
gente que não gosto. Já chega...
- Pois bem... Concordo que a vida material não é lá muito útil para ter
felicidade, nunca nos preenche por completo. Mas você tem um emprego bom, ganha
bem. Poderia ir viajar, não?
- Sim, poderia. O único propósito para se viajar é voltar descansado para
trabalhar mais. É assim que funciona. Você é explorado por um ano e quando
chega ao seu limite, descansa algumas semanas para ser explorado por mais um
ano.
- Hey, eu passei duas ótimas semanas na praia. Tive que economizar um
pouco, mas valeu a pena... Não entendo por que odeia tanto seu trabalho.
Os dois tomaram mais um pouco da bebida.
- Não odeio meu trabalho. Apenas odeio o fato de trabalhar para enriquecer o dono
da porcaria do escritório. Ano passado ele aumentou em duas horas o tempo de
trabalho e o equivalente à uma hora de trabalho no meu salário. É um grande
filho da puta.
- Eu também não gosto muito dele, pra falar a verdade. – Argumentou Edgard. –
Mas só isso não é motivo pra não querer mais viver. O que mais te incomoda.
Charles deu um suspiro cansado. Seu novo amigo não sabia se estava
cansado por seu dia ou por sua vida. Preferiu ficar em silêncio. Serviram-se de
mais uma dose generosa de whisky e continuaram:
- “O que mais me incomoda?” Ninguém nunca me fez uma pergunta dessas
antes. Bom... São muitas coisas, mas vou procurar ser sucinto. Me incomoda ver
toda a mentira que vem dos jornais. Me incomoda se gastar mais em guerra do que
em comida. Me incomoda a podridão que emana de todo ser humano: mentiras,
falcatruas, corrupção, assassinatos, roubos, miséria, exploração!!! Enquanto alguns
têm dinheiro suficiente para comprar um país, milhões passam fome. E ninguém
liga! Ninguém se importa! Estamos mais preocupados em saber quem vai ganhar o campeonato
de futebol, em saber quem matou quem na novela das nove. Escolhemos que carro
queremos daqui a cinco anos, escolhemos roupas de marca para mostrar que somos
melhores que outras pessoas! Somo fúteis o bastante para passar ao lado de
alguém que sofre e tem fome nas ruas e sequer olhar. Não nos comovemos.
Continuou:
- O que mais me incomoda? Humanidade! A falta dela... Só vale a pena
viver enquanto formos humanos. E já deixamos de ser há muito tempo. Somos
máquinas controladas por máquinas. Apenas números e inexpressões de manipulação
em massa. Somos fantoches do Estado, do sistema econômico, da mídia, da classe
dominante, da religião, escravos do dinhe...
- Religião? Não acredita em Deus?
- Ninguém acredita em Deus até que alguém diga que você deve acreditar.
- Mas você tem que acreditar em alguma coisa! Não é possível que você não
acredite em nada!
- Mas é verdade. Estude a fundo a história da religião que você entenderá o que
quero dizer. É apenas mais uma forma de manipular o que você deve ser. A bíblia
não passa de um manual de instruções em que acreditar e o que se seguir.
Edgard estava inconformado.
- Mas se a bíblia é uma mentira? O que é verdade?
- Que verdade, meu caro? Não há verdade! Toda verdade encobre uma mentira. Nada
disso é real. A liberdade é algo que os guardas da prisão nos fizeram
acreditar. Assim não teriam problemas com revoltas.
Mais um gole.
- Você perdeu a fé na vida?
- A vida perdeu a fé em mim. Não nos damos bem...
- Mas...
- O que?
- Não sei mais o que pensar.
- Se quiser, ligue a TV. Eles lhe dirão o que pensar.
- Não! Não quero mais que me digam o que fazer.
- Não tem jeito. De uma maneira ou de outra você terá que fazer o que lhe
mandam. A diferença é que antes você não sabia que alguém ditava as ordens. Agora
você sabe. A única coisa que muda é que você terá que fazer as mesmas coisas
que antes com uma revolta que você não tinha antes.
- Não há maneira de escapar?
- Não encontrei nenhuma. Nem mesmo a morte escapa do sistema.
- Então por que se mata?
- Porque pelo menos assim me livro do que mais me incomoda.
- E o que é?
- A vida.
Com um grande pesar, um olhou para o outro. Havia certeza nos olhos de Charles
e dúvida nos olhos de Edgard. Um sabia o que fazer, o outro não. Mas ambos
sabiam que a conversa havia terminado...
- Com o que se matará?
- Cicuta. Homenagem à Sócrates.
- Tem dose pra dois?
Então os dois brindaram pela última vez.